Gestão do Solo Urbano e os Direitos da Terra
O Caso do Bairro Costa do Sol
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Tamara Bhatt
Os modelos de desenvolvimento da maioria dos países subdesenvolvidos, dos quais Moçambique faz parte, caracterizam-se por estabelecer padrões de concentração de renda e poder e por processos acelerados de urbanização que contribuem para a degradação do meio ambiente, discriminação e exclusão social.
As nossas cidades ainda não oferecem condições e oportunidades equitativas para todos, caracterizam-se ainda por uma deficiente mobilidade e acessibilidade, má distribuição territorial de serviços e uma grande desigualdade de oportunidades. São cidades em que subsistem um centro e uma periferia, onde o acesso à terra segura e infraestruturada não é ainda universal, onde os serviços estão longe dos cidadãos, onde não há transporte público digno, não existem passeios, ou estão ocupados pelo automóvel, em que os edifícios públicos, são insuficientes e não estão preparados para receber os portadores de deficiência física ou motricidade reduzida.
É neste âmbito que surge a questão do direito à cidade, que pretende adereçar os problemas relacionados com o acelerado processo de urbanização, acompanhado pela tendência crescente da pobreza, crescente localização de assentamentos humanos em áreas vulneráveis e crescente segregação social, alienação da contribuição da sociedade civil na construção da cidade e da cidadania. É fundamental, discutir e criar um modelo de cidade sustentável com vista a uma vida urbana baseada nos princípios de solidariedade, liberdade, igualdade, dignidade e justiça social através da gestão democrática da cidade, do direito do cidadão a participar na definição, elaboração, implementação, gestão fiscalização e avaliação das políticas públicas, orçamentos, planos, programas e acções municipais; do acesso a informação pública de forma eficaz e transparente; da produção de habitação social; e fundamentalmente da capacitação e educação dos agentes públicos em direitos humanos e implementação do direito à cidade.
No que diz respeito ao direito à terra, Moçambique tem uma Lei de Terras, criada em 1997, considerada progressista, definindo que a terra é propriedade do Estado e que a mesma não pode ser vendida, alienada, hipotecada ou penhorada, reconhecendo o direito de uso e aproveitamento da terra a todos os cidadãos e comunidades locais, baseada nas formas tradicionais de transmissão e posse de terras. Na tua génese, esta lei vai em tudo de acordo com os princípios de direito à cidade principalmente no que diz respeito à igualdade de oportunidades. Contudo a sua implementação tem-se revelado um desafio, principalmente no diz respeito às delimitações dos terrenos, verificando-se vários casos de conflitos de terra, contribuindo para uma insegurança fundiária.
Este assunto está directamente ligado ao papel do governo como regulador deste processo e em particular das autoridades locais no processo de gestão do solo urbano. A Lei do Ordenamento do Território e o Regulamento do Solo Urbano pretendem instituir uma organização territorial ou produção de espaço urbano através da definição de áreas que podem ser apropriadas para determinado uso ou protecção. Contudo em Moçambique, os instrumentos de gestão urbana são ainda vistos como documentos informativos, ineficazes e constituem instrumento de conflitos de posse de terra, prejudicando grande parcela da população desfavorecida e sem conhecimento sobre a legislação de terras.
1.1 Objectivos
Após a visita de estudo realizada ao Bairro do Costa Sol, ficou clara a pressão do crescimento urbano que a cidade de Maputo vive, e os impactos que tem sobre o meio ambiente, principalmente nesta zona da cidade que conta com áreas ambientalmente sensíveis, como mangais e terras húmidas mistas. Neste sentido esta reflexão irá incidir especificamente nesta área abordando o assunto da gestão do solo urbano e o direito da terra e como estes conceitos estão a ser aplicados e quais as consequências do seu incumprimento.
Enquadramento
Legal
A Lei de Terras, aprovada em 1997, foi elaborada no contexto da reestruturação económica e social pós guerra civil e visou proteger os direitos das populações locais e criar, ao mesmo tempo, condições para investimentos seguros com o objectivo de promover o desenvolvimento (Tanner 2010). Pode-se considerar uma tentativa arrojada de agregar num único sistema oficial de propriedade os direitos costumeiros e a igualdade de direitos, regras flexíveis de acesso, bem como a promoção de investimentos externos na agricultura, indo de encontro com o estabelecido na Constituição moçambicana, cujo princípio fundamental é que toda a terra é propriedade do Estado. Em função disso, a Lei de Terras reconhece às pessoas locais direitos de uso da terra para garantirem os seus meios de subsistência, e prevê que as comunidades locais possam ver os seus direitos à terra formalmente reconhecidos através de um processo de delimitação.
Apesar da Constituição da República e da Lei da Terra afirmarem, inequívoca e explícitamente, a proibição da venda, hipoteca, penhora e qualquer outra forma de alienação da terra, o mercado da terra é uma realidade nos dias de hoje, sendo insensato que as instituições públicas ignorem e rejeitem a sua existência. Os conflitos de terra surgem, muitas vezes, entre as instituições administrativas, as comunidades locais ocupantes da terra e os potenciais cidadãos formais. As comunidades locais vendem a terra, a terceiros, sem permissão das autoridades e sem o direito legal de as vender, e estas atribuem as terras sem consultarem as comunidades locais. Ou seja, o mercado fundiário apresenta características indefinidas, regendo-se por normas não estruturadas, onde o particular procura tirar vantagens.
As cidades moçambicanas cresceram e expandiram, de forma acelerada e irregular, através de assentamentos informais desordenados, desprovidos de infraestruturas básicas, equipamentos e serviços urbanos. Verifica-se que um terço da população vive nas cidades, estando a grande maioria concentrada nos bairros periféricos que não foram acompanhados de implementação de infraestruturas e serviços básicos. A legislação referente ao planeamento e gestão urbana em Moçambique pretende conferir instrumentos que visam minimizar os impactos da ocupação desordenada do solo urbano.
Os fluxos migratórios internos, campo-cidade, foram responsáveis pela velocidade da expansão e crescimento das ocupações informais nas áreas urbanas, tornando-se um desafio e uma ameaça para a gestão urbana da cidade por parte das autoridades municipais.
A introdução da Lei das Autarquias Locais de 1997, foi um marco importante para a gestão urbana e gestores municipais, conferindo-lhes a responsabilidade de gestão do uso e ocupação do solo urbano, no princípio de descentralização do poder.
A Constituição da República de Moçambique, de 2004, garante o direito à habitação a todos moçambicanos, ainda que de forma pouco detalhada e desenvolvida, mostrando uma preocupação com a habitação condigna e condições de urbanidade sustentável, mas não aborda especificamente o tema do planeamento e da urbanização.
Em 2006, é aprovado o Regulamento do Solo Urbano que apresenta o planeamento e a gestão dos espaços urbanos e apresenta uma estratégia para os assentamentos informais que consiste na descentralização de competência da gestão urbana nacional para as autoridades locais competentes, desde a provincial à municipal, com o intuito de os capacitar e prover planos que tem como objectivo melhorar as ocupações irregulares e introduzir mecanismos para a participação das comunidades no processo de planeamento e gestão urbana. Propõe ainda a criação e gestão de novas áreas de expansão urbana. Estabelece ainda os parâmetros para a elaboração de planos urbanísticos, regras respeitantes à urbanização, e ainda os requisitos para a atribuição dos direitos de uso e aproveitamento da terra.
Direito à Cidade no Costa do Sol
A presente reflexão pretende incidir sobre uma área específica da Cidade de Maputo, nomeadamente o Bairro Costa do Sol, onde estão identificadas áreas húmidas alagáveis e áreas de mangal, sobre os quais o processo de transformação do tecido urbano, ao longo dos últimos anos, tem revelado impactos directos nestes ecossistemas sensíveis. Cabe referir que esta área tem sido alvo de expansão urbana, impulsionada pela pressão demográfica e imobiliária, principalmente direccionada a uma classe média (Mazzolini, 2016), e por grandes projectos, em particular, a circular de Maputo que atravessa a Costa do Sol em toda a sua extensão, condomínios fechados e complexos hoteleiros. Estas intervenções geram novas dinâmicas e processos de ocupação urbana, entre os quais o aterro das áreas húmidas alagáveis, criam novos fluxos para esta área e geram conflitos entre a urbanização e o meio natural (Costa & Jorge, 2019).
O Bairro Costa do Sol é compreendido pelo Bairro do Triunfo, Bairro dos Pescadores e acompanha a linha de costa desde a rotunda do “Radisson” até ao Bairro de Mapulene. Constitui uma área de transição entre o meio marítimo e o terrestre, onde se identifica uma vasta área de praia, áreas de mangal e vastas áreas de terras húmidas e alagáveis.
Apesar de ainda manter algumas das suas características originais (PPUAM, 2013), verificou-se nos últimos anos que o Bairro do Costa do Sol, passou por um processo de rápida densificação, resultado da pressão imobiliária, através de compra de talhões de maior dimensão em relação aos ocupantes originais, construção de anexos para familiares mais próximos e ainda através da solicitação, de talhões às autoridades municipais, por parte da comunidade de baixa renda, que resultam na atribuição de espaços em zonas de risco de inundação, nos pântanos e mangais. Estas áreas de elevado cariz ecológico, são progressivamente aterradas para a delimitação de novos talhões e os mangais são cortados para uso doméstico, fruto do processo de gentrificação e densificação, face à valorização imobiliária e introdução de novas dinâmicas.
A partir de 2017 verifica-se, no bairro dos pescadores, a ocupação do espaço exterior aos talhões existentes generalizando-se as moradias isoladas, com o surgimento de novos talhões na duna primária, transitando de delimitações em vedações de espinhosa para muros em alvenaria (Costa & Jorge, 2019). Verificam-se ainda novos aterros para a construção da circular, formando uma nova barreira para esta zona.
Nesta altura verifica-se uma diminuição acentuada das áreas arborizadas, resultado da desmatação para delimitação dos talhões. Os aterros já realizados na última década, dão lugar às construções de pequenas moradias dispersas. Começam também os aterros para a implantação do complexo Casa Jovem (Costa & Jorge, 2019). Com a construção da circular, na zona de Mapulene, verifica-se a densificação da duna e dos aterros, aumentam as construções em materiais locais, rodeadas de zonas inundáveis.
De acordo com a evolução urbana da área do Bairro Costa do Sol, mostra-se progressiva a ocupação das dunas, das áreas de mangal, e das áreas húmidas e alagáveis. É a partir de 2010 que se intensificam os aterros, para a criação de talhões individuais, nas zonas adjacentes às dunas originais, com avanços sobre o mangal e áreas inundáveis. Assiste- se à progressiva delimitação dos talhões com recorte ortogonal sobre os mangais (Costa & Jorge, 2019). E em 2017, com o surgimento da Circular e Casa Jovem, intensificaram- se os aterros para construção de moradias isoladas no lote, consolidando o tecido urbano sobre as terras húmidas e alagáveis.
Actualmente verifica-se que as bacias hidrográficas existentes naquela zona estão sobre grande pressão, reduzindo cada vez mais a sua área de actuação tendo como consequências directas as frequentes inundações urbanas que aterrorizam a população que ali reside.
Outro fenómeno que ocorre nesta zona e vai contra o principio de ocupação de boa-fé e direito da terra, é a substituição dos ocupantes originais desta zona, que embora os seus assentamentos também se caracterizam pela mesma informalidade e irregularidade, estão a ser empurrados para áreas cada vez mais distantes, longe do seu meio de subsistência, como é o caso do Bairro dos Pescadores, e onde agora aparecem grandes mansões, que devido aos seus grandes aterros, se transformam em pequenas ilhas e afectam as construções mais precárias em seu redor.
O que se pode verificar é uma clara falta de capacidade institucional, não só para garantir que as estas áreas são protegidas, tanto na fase de atribuição de títulos de uso e aproveitamento da terra e posterior aprovação de projectos, assim como na fiscalização do surgimento de construções indesejadas e não aprovadas em território de uso interdito.
Então se por um lado, quando falamos no direito à cidade, sob o prisma de direito à terra e consequente habitação condigna, existe um evidente equívoco entre, a necessidade de atribuir as terras para que seja possível que todo o cidadão tenha a possibilidade de implementar esse direito, e a atribuição desregulada das mesmas sem atender à sua localização, falta de infraestruturação básica e prévia tendo em consideração as consequências e impactos negativos directos que pode proporcionar às famílias que sem outra possibilidade, são “obrigadas” a se instalar num território impróprio para assentamentos humanos.
Ou seja, quando se analisa o Plano de Estrutura Urbana da Cidade de Maputo, de 2008, compreende-se que existe uma visão do uso do solo para aquela zona que a determina como polo de crescimento, com área dedicada para expansão urbana, ainda que em áreas ambientalmente sensíveis. Ou seja, esta visão, instituída num regulamento que pretende gerir o solo urbano da cidade, pressupõe à partida a ocupação destas áreas, deixando apenas algumas zonas por ocupar. Contudo, como se pode constatar pela velocidade da expansão urbana e pela falta de capacidade de gerir o território e conter o alastramento dos assentamentos, as poucas áreas ainda entendidas como protegidas estão a ser alvo de ocupação, com o conhecimento e consentimento, ou não, das autoridades municipais.
Depreende-se então que aquando da avaliação e diagnóstico desta parcela de território, as terras húmidas e os mangais não são considerados como áreas fundamentais para a estrutura ecológica da cidade, tanto que o seu zoneamento e categorização nada referem sobre estes dois conceitos, atribuindo apenas os conceitos de áreas alagáveis, áreas de agropecuária e verde natural (mato), sem desenvolver e explicar a sua importância para a urbe, e sem detalhar o carácter e níveis de protecção desejados para as mesmas, deixando em aberto a possibilidade da sua ocupação.
Esta falta de compreensão sobre o zoneamento e respectiva categorização, como ferramenta de gestão do solo urbano, com vista a uma urbanização mais sustentável, está a ter impactos danosos para a nossa cidade, em especial para quem, por desconhecimento ou por jogo de forças, decide construir e residir naquela zona da cidade.
Outro aspecto que em nada contribui para uma gestão eficiente, quer do ponto de vista técnico como de recursos, é a falta de interacção entre os vários sectores e actores que contribuem para o desenvolvimento municipal. As ferramentas e os instrumentos de ordenamento territorial que são desenvolvidos, apresentam poucos contributos das diversas instituições, principalmente no respeitante às infraestruturas, e acima de tudo no que respeita ao ambiente, que neste caso em particular, é de carácter prioritário.
Conclusões e Recomendações
A legislação urbana agrega normas de uso do solo urbano complexas, por isso, se verifica uma ineficiência na execução das atividades de planeamento e gestão urbana associada à escassez de recursos, apesar de incorporar instrumentos essenciais que poderiam minimizar e resolver os problemas da ocupação desordenada, contudo apresenta um vazio, porque viabiliza a ocupação irregular do espaço urbano, exacerbando-se a partir do determinado na Constituição da República de Moçambique que prevê a concessão como direito de usuário automático da terra por ocupação de boa-fé, por mais de dez anos, mesmo com a ausência do porte de título de uso da terra.
Existe, portanto, um claro conflito entre o direito à terra e a gestão do solo urbano, que está relacionado com a carência de recursos materiais, técnicos, humanos e financeiros que tem como consequência uma implementação inadequada das normas de uso do solo urbano e os instrumentos de planeamento e gestão urbana previstas na lei.
É fundamental promover um processo de envolvimento das comunidades locais, consultando e auscultando previamente os agentes interessados, reconhecendo o papel importante dos cidadãos no processo de planeamento e gestão das cidades, com o objetivo de convertê-los de meros objetos passivos, a agentes mais proativos e responsáveis na tomada de decisões, e decisivos do planeamento e gestão do solo urbano.
Claro que para que a esta participação pública seja eficaz, e obtenha os resultados que se pretende, é fundamental a formação de uma consciência urbanística nos cidadãos diretamente ligada a um processo de educação urbana, através da construção de cidadania formal e informal, e que dissemina sistematicamente informações urbanísticas, entre elas a legislação urbana, a todas as camadas da população e a todas as faixas etárias. Deste modo, a população ciente dos seus direitos, da legislação e das consequências de uma gestão urbana danosa, poderá evitar que locais ambientalmente sensíveis e de extrema importância para a saúde física da cidade, não sejam afectadas por decisões que atendem a outros interesses que não o do bem-comum.
Projectos de requalificação urbanística, como a abertura de vias de acesso, criação de condições básicas de saneamento e acesso a água potável e energia, e a criação de espaços verdes e de lazer para uso público, podem minimizar os impactos negativos dos assentamentos informais, tornando possível uma urbanização sustentável, promovendo a inclusão social e o direito à cidade. No caso do Costa do Sol, a criação de um parque ecológico em torno das bacias hidrográficas, áreas de mangal e terras húmidas mistas, pode-se revelar positivo, não só para a população que habita esta zona e que poderá usufruir de uma área de lazer, como para as autoridades municipais que do ponto de vista da gestão do solo urbano, a realização de parcerias público-privadas na manutenção desse território, permite a redução de recursos na fiscalização e contenção do crescimento desordenado, para além da geração de renda em benefício do município.